LISA VICENTE: “É TãO VALIOSO GOSTAR DE FAZER UM PARTO, COMO é VALIOSO ACOMPANHAR UMA MULHER QUE PEDE UMA INTERRUPçãO DA GRAVIDEZ”

Lisa Vicente é uma médica ginecologista, obstetra e sexóloga que trabalhou muitos anos na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, e apesar de já ter feito mais de mil partos, garante continuar a emocionar-se com cada um. Mas afirma não achar menos válidas as vezes em que ajudou na interrupção voluntária da gravidez. Ou quando atendeu mulheres que sofreram mutilação genital ou foram sobreviventes de violência sexual. “Nenhuma destas minhas atividades deve ser considerada mais bonita do que a outra.” Ouçam-na aqui nesta conversa em podcast com Bernardo Mendonça

Em Setembro de 2019, a médica ginecologista, obstetra e sexóloga Lisa Vicente publicou um Atlas. Mas não foi um Atlas qualquer. Chamou-lhe “O Atlas da V.”, onde escreveu de forma atualizada, clara, inclusiva e desempoeirada acerca do mundo íntimo feminino e não só. E também sobre as questões de género, da sexualidade e de como as pessoas com vulva e vagina podem ter uma relação mais saudável e informada sobre os seus órgãos genitais ao longo da vida.

Há ainda muita gente que chega ao seu consultório desconhecendo o seu corpo e os seus órgãos genitais? O prazer e o conhecimento íntimo do corpo é ainda um terreno mais acessível aos homens e rapazes? Quais as principais queixas das pessoas que chegam ao seu consultório? Estas perguntas foram lançadas logo no arranque deste episódio.

Importa dizer que Lisa Vicente foi colaboradora do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e chefe da Divisão de Saúde Reprodutiva da DGS, trabalhou durante muitos anos na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), publicou inúmeros artigos científicos em revistas da especialidade e os temas centrais a que se tem dedicado - além da sexualidade, e saúde sexual e reprodutiva - são a saúde LGBTQIA+, a menopausa, a mutilação genital feminina, a contraceção, o aborto e a diabetes.

Lisa afirma-se uma apaixonada pela profissão e aqui conta que continua a emocionar-se com os partos que faz, e a senti-los como momentos únicos, apesar de contar ter feito mais de mil. Mas chega a relatar o luto que significa para si quando os partos correm mal e relata um desses casos passados numa ambulância a caminho do hospital.

Por outro lado, faz questão de dizer neste podcast que também aprendeu e cresceu muito pessoalmente em consultas com pessoas que pedem uma interrupção de gravidez, que foram submetidas a uma mutilação genital, que são sobreviventes de violência ou têm uma disfunção sexual.

E conta várias histórias sobre cada um desses temas e comenta sobre a dificuldade que as mulheres que querem abortar enfrentam atualmente nos hospitais do SNS, por haver ainda muitos médicos que alegam objecção de consciência.

Lisa declara aprender com todas as pessoas que lhe entram pelo consultório e que algumas consultas ditas de “rotina” revelam-se excepcionais.

Mas excepcional é o percurso multidisciplinar da médica Lisa Vicente.

Em 2023, Lisa Vicente foi distinguida com o Prémio Ativa na categoria de ciência. E na entrega do prémio, Maria de Belém, antiga ministra da Saúde, chegou a dizer sobre Lisa o seguinte:

“Lisa merece este Prémio por si, pela sua carreira, mas também porque é uma militante ao serviço da saúde da mulher, uma área desguarnecida no campo das Ciências da Saúde. Ainda há pouco tempo saiu o Plano Nacional de Saúde e não há um único capítulo para a Saúde da Mulher. A Saúde da Mulher é importante porque são pessoas com igual dignidade, mas este tema ainda é mais importante porque o paradigma da formação e da investigação tem sido sempre masculino. Nós somos a metade desigual, para mais, da Humanidade e não é admissível que este modelo continue a imperar.”

Neste episódio, Lisa comenta estas palavras de Maria de Belém e junta um reparo sobre a manifesta desigualdade de género ainda existente nos lugares de poder das Ciências da Saúde.

Lisa deixa claro que está sempre em constante formação e questionamento dado que o conhecimento em ciência é veloz e não basta ter “sensibilidade e bom senso”.

Implica "estudo, treino, investigação atualizada, abertura de espírito e disponibilidade para perceber a diversidade das pessoas, dos corpos, das experiências, das identidades e das escolhas.”

A médica explica ainda como leva à letra a frase “To live and let live”. Vive e deixa viver. E mais em tempos em que algumas pessoas e partidos querem ditar a forma de viver e estar de outras, querendo retirar-lhes lugar e direitos.

A médica Lisa Vicente começa esta segunda parte da conversa algo emocionada com as palavras deixadas pelo poeta e dramaturgo André Tecedeiro. E começa por responder à questão se os profissionais de saúde são ainda demasiado conservadores e preconceituosos e o que importa mudar e transformar nas mentalidades de quem trabalha na área da saúde.

Lisa fala também da sua recente grande mudança de vida, em 2023, ao ter deixado de fazer parte da equipa de obstetras da Maternidade Alfredo da Costa, para escapar à voragem do excesso de trabalho que a consumia demasiado. E dá conta que, por vezes, escolher o incerto é o mais certo nesta vida. Mesmo que essas escolhas signifiquem deixar para trás algumas coisas de que goste, ganhou outras.

Lisa comenta ainda este novo cenário político na AR e o que considera importante mudar ou celebrar meio século depois do 25 de abril. E ainda nos dá música e poesia, ao ler dois poemas de André Tecedeiro que lhe entraram na pele e revela que se fosse um animal, seria um gato com asas. Porquê? É ouvirem.

Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Matilde Fieschi. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

Até para a semana e boas escutas!

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